A utilização de marcas registradas em contextos criativos tem gerado debates importantes acerca das fronteiras existentes entre propriedade intelectual e liberdade de expressão. Recentemente, um caso envolvendo a franquia “Dungeons & Dragons” e o espetáculo “Dungeons & Drag Queens” nos EUA trouxe essa discussão à tona mais uma vez, ao colocar em pauta os limites do uso de designações comerciais em criações artísticas. No episódio, a Wizards of the Coast, titular da marca do jogo, moveu uma ação para impedir o uso do “nome” do game (marca registrada) no nome do show, sob alegação de que isso poderia causar associação indevida com o jogo. Por outro lado, os organizadores do espetáculo sustentam que a iniciativa é uma paródia, protegida pelo princípio da liberdade criativa, e que a confusão entre os dois players não seria possível.
Embora esse caso tenha surgido nos Estados Unidos, onde a doutrina do fair use que reconhece de forma mais objetiva os contornos da definição de paródia para fins de uso de obra de terceiro sem que haja a necessidade de obtenção de autorização prévia e expressa, sua discussão faz emergir a questão de como isso seria tratado no Brasil. A legislação brasileira, por meio da Lei de Propriedade Industrial (Lei Federal nº 9.279/1996), garante ao titular do registro de uma marca o direito exclusivo de seu uso em território nacional para distinção dos serviços e/ou produtos assinalados no respectivo registro expedido pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (“INPI”).
Portanto, no caso concreto, seria importante para que a Wizards of the Coast pudesse obstar a utilização da Dungeons & Drag Queens que a empresa fosse titular de registro específico da marca “Dungeons & Dragons” na especificação que corresponde a apresentações públicas, shows etc. Isso porque, primeiro, não há notícia de apropriação e caracterização de personagens, elementos criativos identificadores do jogo em si (o que afasta eventual violação de direito autoral, até porque a própria Lei de Direitos Autorais assegura que nomes e títulos isolados não são passíveis de proteção autoral) e, além disso, a marca Dungeons & Drag Queens não possui registro de marca de alto renome, o que confirma a limitação do alcance de seu às atividades compreendidas em seu registro. Além disso, é importante notar que caso a Wizards of the Coast obtivesse êxito pedido de registro da marca “Dungeons & Dragons” para universo de apresentações públicas isso já seria o suficiente para obstar o uso da marca “Dungeons & Drag Queens”, na medida em que as marcas não precisam ser exatamente colidentes para serrem suscetíveis de causar confusão ou associação indevida.
Além de determinar que nomes e títulos isolados não passíveis de proteção autoral, a Lei de Direitos Autorais autoriza a criação de paródias, desde que não prejudique a reputação da obra original. No entanto, essa proteção se aplica a criações artísticas, e não diretamente ao uso de marcas, o que cria um cenário mais complexo quando o objeto da paródia é um nome comercial registrado. Portanto, enquanto a liberdade para transformar obras artísticas é reconhecida pela legislação vigente, o uso de marcas protegidas enfrenta maiores restrições, especialmente no que diz respeito à sua associação com produtos ou serviços de terceiros.
Um ponto relevante a ser considerado é a possibilidade de coexistência de marcas idênticas ou semelhantes, desde que designem produtos ou serviços distintos. A legislação brasileira permite essa convivência em situações nas quais não haja risco de confusão entre os consumidores. Exemplos como “GOL”, utilizado tanto para uma companhia aérea quanto para veículos, ilustram essa realidade. No caso de “Dungeons & Dragons” e “Dungeons & Drag Queens”, um argumento plausível para os criadores do espetáculo seria que os dois nomes se referem a atividades completamente diferentes — um jogo e um espetáculo de performance. No entanto, mesmo quando os produtos ou serviços são distintos, deve-se avaliar se o uso da marca em questão poderia causar alguma associação indevida, algo que a Lei de Propriedade Industrial busca evitar.
A jurisprudência brasileira sobre o uso de marcas registradas em paródias ainda não é consolidada, e os tribunais analisam cada situação de forma individual. A principal preocupação dos julgadores é o risco de confusão ou a associação prejudicial entre as partes envolvidas, o que geralmente privilegia proteção da marca já registrada. Contudo, o contexto do uso e o campo de atuação são levados em consideração, o que pode abrir espaço para a coexistência de nomes semelhantes em mercados diferentes, desde que bem delimitados.
Portanto, o uso de marcas registradas em obras paródicas no Brasil carece de maior reflexão a nível jurispruedncial, especialmente em comparação com outros países. Enquanto a criação artística, em especial no campo das paródias, é mais flexibilizada pela legislação de direitos autorais, o uso de nomes comerciais registrados percorre caminho mais rigoroso, com o intuito de sempre proteger o consumidor e o detentor dos direitos da marca. O equilíbrio entre a proteção da propriedade industrial e a liberdade de expressão no Brasil é tema em constante desenvolvimento, e as decisões judiciais desempenham um papel central na definição desses limites.
Essa questão é especialmente relevante para as indústrias criativas, em que a paródia é frequentemente utilizada como forma de crítica ou humor. Ainda que seja possível defender o uso de marcas em contextos paródicos com base na liberdade de criação, a legislação brasileira tende a priorizar a proteção do titular do registro, ao propiciar menos margem para o uso irrestrito dessas designações. Em comparação a outros países, o Brasil adota postura mais conservadora na convivência de nomes semelhantes, especialmente quando há o risco de confusão ou associação com produtos e serviços do titular da marca.